Acessibilidade nas cidades ignorada pelo Congresso

Mara em comissão olha para sua frente com uma expressão séria.

Se fosse para definir o ir e vir do Brasil atual, eu diria que nossa caminhada segue rumo a retrocessos. Damos um passo à frente, mas voltamos dois para trás. Um dia após o Senado ter aprovado por unanimidade o reconhecimento da acessibilidade e da mobilidade como direitos fundamentais na Constituição, ficou evidente a falta de compromisso e empatia do nosso Parlamento com a pauta da acessibilidade. 

No processo de votação do projeto de lei 2505/2021, conhecido como reforma da lei de improbidade, foi revogado um artigo da Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (13.146/2015), que obrigava gestores públicos a cumprirem a exigência de requisitos de acessibilidade, sob pena de incorrer em ato de improbidade administrativa.

Esse projeto foi apresentado ainda em 2018 pelo deputado Roberto de Lucena (Pode-SP) – na época sob o número 10887/18 – e resultou do trabalho de uma comissão de juristas criada pelo então presidente da Câmara, Rodrigo Maia. Acontece que a modificação que retirou a possibilidade de improbidade administrativa para os gestores que não fizerem obras com acessibilidade só foi incluída no texto pelo relator na Câmara, deputado Carlos Zarattini (PT-SP). O projeto inicial foi tão modificado pelo relator, que o próprio autor do texto deu seu voto contrário ao projeto, que acabou aprovado pela Câmara em junho deste ano.

Já em setembro, durante a discussão realizada na passagem do projeto pelo Senado, tentei convencer o relator e explicar aos demais senadores o quão prejudicial era essa decisão para todos os brasileiros. Apresentei uma emenda ao PL para manter o dever do agente público de promover a acessibilidade prevista em lei, mas o relator do projeto, senador Weverton Rocha (PDT-MA), rejeitou a emenda sob a alegação de que já existem outras legislações que garantem esse direito. Afirmou, ainda, que se qualquer cidadão se sentir lesado, seria cabível uma ação civil pública. Ou seja, enquanto corre a ação, que pode durar anos, a pessoa não sai de casa e continua vetada de seu direito de ir e vir.

Para tentar reverter a mudança, o PSDB apresentou minha emenda como um destaque, que infelizmente foi votado e derrubado por uma diferença de três votos (34 a 31). Dessa forma, foi mantido o texto proveniente da Câmara, chancelando um retrocesso que prejudica a todos os brasileiros, sem exceção.

A acessibilidade é um meio essencial para o exercício de direitos. Ela diz respeito a todos: vale para a mãe com carrinho de bebê, para as crianças, para as pessoas idosas, para o homem distraído que olha o celular e tropeça no buraco da calçada. A acessibilidade é o que nos garante ter cidades, edificações, meios de transporte mais seguros e inclusivos, comunicações acessíveis a todos. Isso significa acesso ao trabalho, à educação, à cultura, ao esporte e ao lazer. Falamos aqui de cidadania.

Em qualquer cidade do mundo, um gestor que visa o desenvolvimento humano e sustentável tem o dever de incluir a acessibilidade como parte estratégica de seu plano de governo. Ainda mais se pensarmos em desenvolvimento a longo prazo, que mira o envelhecimento das populações.

Países como Japão, Estados Unidos, Canadá, Grã-Bretanha, Alemanha, Suécia, entre tantos outros, há anos vivenciam essa transição demográfica, implantando acessibilidade em cidades – muitas construídas há milênios. Nesses locais, calçadas são planas, há semáforos sonoros e sinalização para que qualquer cidadão se locomova com segurança e autonomia. Seja uma criança, um idoso, um cego, uma pessoa surda, um cadeirante ou um maratonista. As cidades devem ser sem barreiras para qualquer cidadão.

Aqui no Brasil, o IBGE projeta que, em 2060, teremos mais de 58 milhões de pessoas idosas, ou seja, quase 30% da população com pessoas acima de 65 anos. A expectativa média de vida aumentará dos atuais 75 anos para 81 anos. E não há como deixar de refletir sobre a qualidade de vida (ou ausência dela) para futuras gerações. Por isso, proponho aqui uma reflexão aos gestores públicos que ainda não compreendem a importância da acessibilidade em seus planos de governo: vocês podem não ter uma deficiência ou doença rara, nem conhecer quem tenha, mas tenho certeza que, ainda assim, buscarão envelhecer com dignidade. E é a acessibilidade que definirá qual será a qualidade de vida de cada um.

Lembro ainda que outubro foi o mês escolhido para celebrar o Dia Internacional do Idoso. Eu gostaria muito de usar esse espaço para falar sobre os avanços nas políticas públicas para essa população, mas, infelizmente seria descolado da realidade usarmos o verbo celebrar. O que nos cabe no momento é lutar.

Aprovado novamente pela Câmara na primeira semana de outubro, o projeto já foi sancionado, sem vetos, pelo presidente Jair Bolsonaro, transformando-se na Lei 14.230/2021.

Paralelamente a isso, já estamos estudando as medidas e ações judiciais cabíveis para tentar reverter essa aberração, sem dúvida, um dos maiores retrocessos dos últimos tempos nos direitos das pessoas com deficiência.

A falta de acessibilidade é uma discriminação silenciosa, mas extremamente limitante e limitadora. Trata-se de um crime que deve ser combatido por toda a sociedade. Não reconhecer o valor da acessibilidade é o mesmo que não reconhecer o valor das pessoas idosas, que tanto contribuíram para o país. É o mesmo que não reconhecer o valor de toda a diversidade humana. É decretar nossa falência como civilização.

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