Trinta anos da Lei de Cotas: o que os brasileiros com deficiência têm a celebrar?

Foto da Mara na tribuna do Senado Federal em pé na sua cadeira com uma feição séria.

Se tivesse que definir boa parte de minha personalidade, com uma única palavra, seria ‘trabalho’. Antes da tetraplegia, ainda bem nova, pude trabalhar com diferentes atividades. Fui cuidadora de pessoas com deficiência e de idosos, vendedora de roupa, publicitária, faxineira, professora de português para gringos e babá. Depois de tetra, fui modelo, psicoterapeuta, colunista, palestrante e gestora de ONG.

Todas essas funções, cada uma à sua maneira, contribuíram para o que sou hoje. O trabalho é sem dúvida uma das principais ferramentas de inclusão social de qualquer ser humano. Além de garantir dignidade, proporciona também bem-estar, poder de consumo e uma vida com perspectivas. Este pensamento sempre norteou minha atuação como parlamentar, bem como todo o segmento da pessoa com deficiência. Isso, contudo, não é o que o nosso governo vem mostrando na prática.

Neste momento, infelizmente, enfrentamos algumas medidas do governo federal que configuram retrocessos imensos, com um viés bastante capacitista, e que conflitam diretamente com a Convenção da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e com a Lei Brasileira de Inclusão.

Uma delas é gravíssima e atinge diretamente a Lei de Cotas. É o Projeto de Lei 6159 de 2019, que foi enviado pelo presidente Bolsonaro ao Congresso. Estamos trabalhando para derrubar esse projeto, que ainda está na Câmara dos Deputados. Queremos a rejeição completa do que o governo propõe.

De acordo com o projeto,  as empresas, ao invés de contratarem os trabalhadores com deficiência, poderão ter outras alternativas, inclusive com pagamento de valores para não precisarem mais contratar. Não é a multa por descumprimento da Lei de Cotas, que temos hoje. Ao contrário, seria uma tarifa, que o governo receberia para a empresa deixar de contratar. Um verdadeiro absurdo que fere o direito ao trabalho, coloca em risco as pessoas já empregadas e fecha as portas para as demais, deixando os que já são vulneráveis ainda mais vulneráveis!!

Não satisfeito em atacar o direito ao trabalho, o governo atacou a educação inclusiva, que é a política que mais contribui para combater o preconceito e para tirar as pessoas da miséria e da invisibilidade. Lutamos há décadas para não haver mais recusa de matrículas, algo que é crime, e o governo vem com uma medida que impõe como política de educação a segregação dos alunos com deficiência. São ataques muito cruéis às políticas de inclusão. Tudo isso em plena pandemia.

É lamentável trazer esses alertas neste dia que seria de celebração. Mas seguimos firmes na luta para combater qualquer retrocesso às nossas conquistas.

Apesar das dificuldades, temos o que celebrar, uma vez que a LBI garantiu o modelo biopsicossocial de avaliação da deficiência e diversas inovações no capítulo do direito ao trabalho. A Lei trouxe também o auxílio-inclusão, que garantirá um complemento de renda ao salário do trabalhador com deficiência, a ser pago pelo governo.

Como o auxílio ainda não tinha sido regulamentado pelo Executivo, o Congresso aproveitou a edição da MP 1023 e incluiu os critérios para quem poderá se beneficiar dele, com sua inclusão na Lei 14.176, sancionada recentemente em 22 de junho de 2021. Apesar de  não ter o alcance universal que buscamos, para todos os trabalhadores com deficiência, sua garantia representa uma conquista no que tange a promoção do trabalho decente.

Ainda, por meio da LBI, conseguimos o trabalho com apoio; a igualdade de remuneração, o estímulo à capacitação simultânea à inclusão profissional e o direito do trabalhador com deficiência de sacar o FGTS para comprar cadeira de rodas, órteses e próteses. Todos esses direitos já estão em vigor. São inovações na legislação das quais temos muito orgulho e não vamos permitir qualquer retrocesso.

Neste aniversário de 30 anos da Lei de Cotas, lembro que não podemos de forma alguma  permitir que os mais vulneráveis se tornem mais vulneráveis ainda. Uma nação que busca crescer não impede seu povo de trabalhar com dignidade. Mais ainda: não dá anuência para empresas que não seguem a Lei.

Retroceder é um verbo que não cabe ao povo brasileiro com deficiência e sua luta histórica por igualdade e respeito.

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