A vida é rara para pessoas raras

Foto em preto e branco de Laura carregando seu filho nas costas. Ela está sorrindo e ele a abraça pelo pescoçoCompartilhamos o depoimento realista e comovente de Laura Patrón, mãe de uma criança com doença rara, que emocionou a todos em sessão especial no plenário do Senado. Confira o discurso em que ela conta sobre a sua realidade e a de outros brasileiros que convivem com uma doença rara

UM RAIO CAIU NA TUA CASA. Foi assim que eu soube. Foi essa expressão que usaram, ainda no hospital, no choque de tudo, pra tentar responder a minha pergunta confusa: Raro? Quão raro?

Eu nunca desejei ser mãe. Sempre me senti a quilômetros de distância da imagem da super mãe – a mulher que sabe de todas as coisas. Minha gravidez não foi planejada. Foi um susto que exigiu coragem.

No processo, dividi com meu companheiro na época. Muitas questões sobre quem nosso filho seria. Nós falamos sobre afeto, entrega, doação. Falamos sobre uma educação feminista. Pensamos nas formas que abordaríamos sexualidade, raça, religião, privilégios, fazendo suposições e pensando em como e quem seríamos diante de um ser que não conhecíamos ainda. Eu queria ter certeza que não ia faltar amor e espaço, independente do que acontecesse.

Meu filho foi sempre raro pra mim. Eu nunca quis ser mãe e me apaixonei pela sua presença ainda dentro da barriga. Ele nasceu em um domingo de carnaval de um ano bissexto. Com 3 meses eu descobri que ele tinha um sorriso que carrega o sol. Com 1 ano ele tinha capacidade motora e inteligência de 1 ano e meio. Pouco depois descobri que ele acreditava na vida na terra seca. Insistia com afeto e convicção em partes do jardim que já haviam morrido. Cada minuto com o João foi sempre muito sentido e muito raro.

Com 1 ano e 8 meses o corpo dele colapsou. Do nada.

Uma crise rápida e violenta da doença rara que hoje conhecemos, nos pegou em uma virada de esquina qualquer da vida. No domingo de sol estávamos pulando no parque em uma cama elástica, na segunda-feira, baixando no hospital de onde demoraríamos 71 dias para sair.

Eu entrei em uma emergência com meu filho no colo urrando de dor. Entrei achando que era uma virose, uma gastroenterite, ou qualquer coisa banal. Mas o João foi diagnosticado com SHUa, síndrome hemolítica urêmica atípica, e sofreu um AVC grave, enquanto esperava pelo remédio que demorou demais pra chegar. O avc que deixou muitas sequelas motoras e foi assim que os mundos totalmente estranhos das doenças raras e das deficiências começaram para nós. Ao mesmo tempo. E o João se tornou parte dessas “minorias” gigantes: No Brasil, 13 milhões de pessoas tem doenças raras e 45 milhões tem algum tipo de deficiência.

Eu tinha uma vida comum antes disso. Era só uma mulher atrapalhada aprendendo a ser mãe de um menino comum. Eu tinha planos, sonhos, programações, provavelmente parecidas com as de vocês. No momento em que ouvi “é como se um raio tivesse caído na tua casa”, respondi instintivamente: mas esse raio é meu. Não é só uma probabilidade. Um cálculo. Um fenômeno misterioso. Tem nome. Tem mãe.

É uma responsabilidade imensa estar aqui hoje representando mães. Representando essas mulheres corajosas que não param. E sim, eu falo em mães e mulheres porque no Brasil 78% dos pais abandonam os filhos com doenças raras. Números da epidemia do abandono, números da solidão. Nós temos uma maternidade rara e solo imensa nesse país. Mulheres que vão encontrar rede de apoio em outras mulheres, possivelmente suas próprias mães, as avós tão presentes nas nossas histórias.

Então hoje, aqui, eu espero ser muitas. Espero honrar cada uma delas. As mães que escolheram ser mães. As que eram jovens demais e tiveram que amadurecer.

As que trabalham porque precisam. As que não trabalham porque são as únicas cuidadoras de seus filhos. A mãe negra, a mãe LGBT+, a mãe de LGBT+, que somam medos diferentes de perda que eu jamais vou poder dimensionar. A mãe que vive o luto de um filho que já se foi. A que não quer saber de ativismo nenhum – sobreviver já é tão difícil. A mãe que se coloca na frente. A que vive na periferia e enfrenta todo tipo de obstáculo. A que aprende outra língua para entender seu filho. A mãe que desanima. A que tem sede. A que nunca se cura.

A que não consegue aceitar seu filho mas tenta. A mãe que morre e nasce de novo. A que sorri mesmo quando dói. A que luta contra a depressão. A mãe que não fala. E a mãe que não se cala, como a Regina que temos aqui hoje presente, do Instituto Vidas Raras, uma das maiores ativistas das doenças raras desse país.

Não é sobre a minha história, é sobre uma história coletiva. De vivências diferentes que se encontram nos mesmos pontos: nenhuma de nós sabia. Nenhuma de nós esperava. E todas temos medo.

A sensação de impotência diante de uma doença rara, diante da pouca informação sobre futuro, do descaso das instituições, do atraso do remédio para pessoas que dependem dele, da possibilidade de uma nova bomba explodir sem que nada possa ser feito, consome uma mãe. É uma dor muito solitária.

Temos medo de perder nossos filhos. Temos medo que eles nos percam. Temos medo do presente e do futuro. Temos medo de dormir a noite. De não socorrer a tempo. Temos medo do tempo.

Eu queria que todos pudesse sentir isso, por pelo menos um dia na nossa pele. No corpo de um raro ou de um familiar próximo. Primeiro, eu quis os juízes, donos das sentenças. Mas pensando melhor, acho que todos é um número mais justo. Seria o correto. Professores, empresários, o dono do restaurante, a gerente do banco. Os meus vizinhos. Médicos. Síndicos. Donos de laboratórios. Advogados. O ministro e os secretários da saúde. Representantes da Anvisa. Os motoristas do Uber que pego quinzenalmente para levar meu filho de volta ao hospital, de onde as vezes tenho a sensação que ele nunca saiu. As enfermeiras que manipulam a medicação, o atendente do café que nos vende o pão de queijo.
Vocês, todos, sem exceção.

É que de longe parece mais aceitável abraçar números, e não pessoas. Contar, ao invés de olhar profundo. A certa distância fica simples: risca, resolve, vota, decide, deu. Sem olhar os olhos vivos de quem precisa, o frio é garantido. De longe somos papéis. Raros papéis, nomes sem sentido pra você, vidas que não fazem parte da sua. Não fazem a menor diferença para sua família. Você pode passar batido pela nota de um funeral no jornal. Você não vai chorar a morte do meu filho.

Bastava só um dia do seu ano, com trezentos e sessenta e cinco. Um dia para sentir na sua pele o que é viver na minha, todos os outros. Não vou mentir. Você vai sentir dor. Muita dor. Tinha uma história diferente pra você virando a esquina. Você não viu. Não tinha como ver. Não tinha nada para ser feito.

É um choque duro. Sem direito a anestesia. Você vai pegar a bomba com as próprias mãos e trazer para dentro da sua casa. Você vai assistir segundo a segundo a contagem regressiva do fim, sem poder fazer nada. Você vai sentar ao lado do seu filho, morrendo. Você vai suplicar. Acreditar em tudo que nunca acreditou. Você vai se sentir em um filme de ficção científica de péssimo gosto quando informarem oficialmente que seu filho vai depender pro resto da vida de uma medicação absurdamente cara, que sequer existe no Brasil. Que a vida do seu filho agora depende dos outros, não só de você. Depende de um sistema, de processos e papéis, logística e bom senso. Burocracia. Boa vontade alheia. Você não sabia o que era ter medo até esse momento que te tira a voz. Você não vai poder nem gritar. Eu não pude. As vezes você vai sorrir. Mas vai saber que parte do seu sorriso é uma mentira. A outra parte é teimosia em resistir. Você vive pelo seu filho. Você faz de tudo para fazer a vida dele o melhor que pode ser.

Você quer que ele seja feliz. Que tenha a chance de ter um mundo, do jeito que for. Que tenha uma chance de ter uma vida, para além de cuidados médicos e terapias. Você chora de noite escondido, porque sabe que não tem poder suficiente para garantir isso. Seu coração pulsa dúvidas de hora em hora. Você quer ver ele ficar velhinho, quer morrer antes, quer controlar a vida e não pode, quer resolver tudo e não consegue. Você repete compulsivamente que está tudo bem. Você sabe que não está tudo bem. O remédio está faltando na geladeira, atrasou mais uma vez. E se não chega?
Você vai sentir agonia. E raiva.

Vai se sentir um completo inútil. Impotente. Refém.
O seu filho pode morrer a qualquer atraso. Ou aumentar as sequelas em um corpo que já sofre. Um perigo enlouquecedor está sentado na poltrona da frente. Você vai ficar rebobinando essa agonia, de novo e de novo. Enquanto os outros vão te pedir calma. Aí você vai gritar. Agora vai. Você vai gritar com pessoas, órgãos responsáveis. Você vai sangrar pelo nariz. Você vai usar palavras difíceis que não domina. Você não domina nem o seu sono a noite. Não tem direito a nenhum tipo de tranquilidade. Você sente que sua vida é uma brincadeira de mau gosto. Você não é um ser humano a ser protegido e zelado, você é uma cifra que incomoda. Você nunca desejou tanto uma paz que não seja frágil. Não sabia a importância que isso tinha até perder por completo qualquer tipo de paz. Você vai sonhar com seu filho amado morto, noite sim, noite não. Você vai acordar suado pedindo um pouco de humanidade. Um pouco de dignidade. Você vai pedir por amor. Vai desejar um mundo melhor. Você vai abraçar seu filho tentando esconder a dor. A preocupação. A insônia. A revolta. A morte que você morre todos os dias a conta gotas enquanto pensa na possibilidade de perdê-lo. Você vai se sentir pequenininho.
Minúsculo.
Você vai ser quase nada.

Nesse momento eu te traria de volta, pode ficar tranquilo. Você não vai ficar preso na minha pele. Eu não pretendo me livrar dela assim. Tudo faz sentido quando o João abre um sorriso de manhã cedo. Se você tivesse vivido um dia na minha pele saberia o valor que isso tem pra mim. Depois de sentir a temperatura do meu sangue, a falta de ar do meu medo, o amor que pulsa em cada pedaço de mim, você saberia. Nunca mais conseguiria me ver como um papel, um número qualquer. Eu seria finalmente gente pra você. Carne digna de compaixão. O meu risco iminente doeria em cada pedaço seu.

A vida é rara para pessoas raras.
É urgente, porque falta tempo pra esperar.
É frágil diante de uma assinatura.
Você não precisa viver um dia na minha pele para saber disso.

Eu tenho uma lista aqui. Uma lista de crianças que estão sem receber medicação desde julho do ano passado. Crianças com a vida sufocada, crianças em sofrimento. Esperando o que vai chegar primeiro: o remédio ou a morte? A possibilidade de um pouco de dignidade, ou a continuidade de um sistema que finge que as pessoas não existem. Mas elas existem.

João fez 8 anos umas semanas atrás. Está na terceira série em tempo regular. Alfabetizado. É um menino divertido, inteligente e amoroso, que gosta de esportes radicais e livros, com uma vida inteira pela frente.

E eu, do alto dos meus muitos privilégios, venho tentando educar meu filho sobre um mundo justo. Sem racismo, sem capacitismo, sem machismo, sem lgbtfobia, sem desigualdade. Um mundo que não discrimine nenhuma pessoa por ser quem é. Que não deixe ninguém pra trás. Que inclua, cuide e celebre existências.

E talvez esse seja o nosso maior legado possível. Alargar a fronteira da nossa humanidade: reaprender, transformar, reparar o nosso olhar diante de toda e qualquer pessoa. E criar alternativas de futuro viáveis, caminhos sustentáveis, narrativas de um amanhã em que todos caibam.

Eu não quero caridade. Não preciso da sua pena. Eu quero respeito, responsabilidade e comprometimento. Quero políticas públicas de qualidade que funcionem e façam jus a urgência da vida. Que cuidem de quem precisa e de quem cuida também. Quero inclusão, debate, informação. E quero a minha liberdade de volta. E liberdade é não ter medo

A doença do João não tem cura a princípio, mas a indiferença e o descaso tem.

Meu filho existe. A Heloísa existe. O Cauã existe. O Mohamed existe. A Vanessa existe. É sobre gente que estamos falando. Obrigada.

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